A universidade como entidade pretensamente neutra e universal já não consegue esconder suas contradições. Os conflitos sociais já não podem ser ocultados, o povo reivindica o que é seu em plena luz do dia. Entra em cena clamando por transformações profundas e já não se contenta com migalhas. Quer que as instituições – tantas vezes reprodutoras das desigualdades que o oprimem – sejam parte do grande bloco que batalha uma história protagonizada novamente pelos “de baixo”.
Em lugar da Universidade velha e arcaica, quer a Universidade do povo. Derruba a Universidade privatizada, constrói a Universidade do povo. Morre a Universidade elitizada, nasce a Universidade do povo. Não quer o “popular” como sinônimo de precariedade, mas excelência para todos. Sai a Universidade precarizada, entra a Universidade do povo. Instituição que no nome retoma o sentido do universal ao caracterizar o sujeito que a protagonizará: essa é a Universidade Popular.
Se os movimentos emancipadores encontram-se na defensiva, não implica que não haja resistências amplas e também localizadas. Mas as classes dominantes tremem ante a possibilidade de seu domínio global ser contraposto por um projeto igualmente global. É parte da sua estratégia impedir-nos de constituir a nossa. E justamente na unidade dos diferentes agentes, táticas de atuação nos vários âmbitos, e um objetivo estratégico comum é que reside a possibilidade de derrotar o atual modelo de Universidade.
Não é um caminho rápido nem fácil. Mas a sua complexidade não deve implicar qualquer desânimo ou imobilismo. É preciso avançar coletivamente, enfrentando os dilemas e escolhendo os caminhos a cada encruzilhada encontrada. Fundamentalmente, é manter o espírito coletivo em torno de políticas concretas, colocando toda a energia transformadora em movimento.
Com esse espírito, estivemos reunidos nos campi da Universidade Federal do Rio Grande do Sul nos dias 2, 3 e 4 de setembro de 2011, e agora compartilhamos os principais acúmulos de discussão do I Seminário Nacional de Universidade Popular (SENUP). São propostas de políticas que emergiram consensualmente dos diferentes Grupos de Discussão temáticos. Elas não expressam necessariamente a opinião homogênea de todos os participantes do SENUP, mas sugerem alguns dos caminhos possíveis para a construção da Universidade Popular. Venceremos!
Porto Alegre, 4 de setembro de 2011.
Deliberações DO I SENUP1
A Universidade hoje e a Universidade Popular
Lutar por uma Universidade Popular significa compreender a necessidade de ligar as tarefas imediatas de nosso movimento com a construção de um projeto de universidade alternativo ao projeto do capital.
Temos, nos últimos tempos, um direcionamento “lento e gradual” das instituições educacionais às necessidades de acumulação do capital, com uma aceleração na década de 90 e em especial no século XXI. Este direcionamento se manifesta: na reestruturação político-pedagógica da maioria dos currículos dos cursos de graduação, subordinando as iniciativas da universidade às necessidades do mercado, em detrimento das demandas da população; na entrega da estrutura física e de recursos humanos públicos para a produção de ciência e tecnologia de acordo com as necessidades da iniciativa privada, o que compromete a autonomia didático-científica das universidades; uso do dinheiro público para salvar empreendimentos universitário privados; na diminuição dos recursos públicos relativos a quantidade de vagas abertas nas universidades públicas, que aumenta a precarização e intensificação do trabalho, diminui a qualidade de ensino, inviabiliza a manutenção do tripé ensino-pesquisa-extensão voltado aos interesses populares e incentiva as instituições a buscar outras fontes de financiamento paralelas ao Estado; nos parcos mecanismos democráticos que permitam à comunidade universitária interferir nos rumos tomados pelas instituições; etc.
A formalização deste conjunto de medidas tem aparecido em decretos, medidas provisórias, leis recentes que, por seu caráter fragmentado, ofuscam a gravidade do processo pelo qual um direito se converte em mercadoria, e uma autarquia, em tese pública e autônoma, em uma prestadora de tais serviços. Exemplos desses projetos são o decreto das Fundações, o SINAES, a Lei de Inovação Tecnológica, a Universidade Aberta do Brasil, o PROUNI, o REUNI, o chamado “Pacote da Autonomia”, e mais recentemente projetos como a lei 7.423, o PL 1749/11 (antigo MP 520) e a lei 12425 (antiga MP 525) que tratam, respectivamente, da relação das universidades com as Fundações “ditas” de Apoio, da gestão dos Hospitais Universitários (HU´s) e da possibilidade de ampliação dos contratos temporários nas Instituições Federais de Ensino Superior (IFES).
Este processo nos leva a concluir que o projeto hegemônico para a universidade brasileira é global e dinâmico, e que nossa tarefa de questioná-lo e contrapô-lo exige que trabalhemos não somente a partir de ações pontuais e reativas a seus avanços, mas principalmente a partir da formulação de um projeto alternativo igualmente global. O desenvolvimento desse projeto, a que chamamos popular, e sua construção cotidiana na universidade e fora dela são os eixos de nossa luta. É necessário, por isso, situar em que patamar se encontra a construção desse projeto popular para a universidade.
A educação não é determinada somente pelas instituições formais (escolas, universidades, escolas técnicas etc). Estas são uma parte importante na totalidade dos processos educacionais, mas somente uma parte. Temos, assim, a seguinte equação:
1) temos os processos educacionais como um todo. Falamos de um sistema de internalização de valores, hábitos, princípios morais e éticos da sociedade vigente, especialmente de sua classe dominante. Isto significa que estamos falando de indivíduos sociais que, mesmo não tendo qualquer nível de escolaridade, também são educados pela sociedade e levados a assumir seu ponto de vista de forma “natural”. O egoísmo, o individualismo, que se afirmam na tendência a resolver problemas sociais de forma privada, a desumanização, indiferença em relação à barbárie social e o sofrimento humano são apenas exemplos de como a sociedade nos educa a aceitar um modo de vida social tão absurdo, e isto independe da escolaridade;
2) e temos as instituições educacionais. Aí, os indivíduos sociais já são induzidos a uma aceitação ativa das normas sociais pré-estabelecidas. Tanto mais ativa será esta aceitação, quanto mais elevado o nível de complexidade de que estamos falando. Na universidade, chegamos ao entendimento da gênese abstrata de conceitos e teorias que asseguram a legitimação e a reprodução da ordem vigente.
A mediação entre os dois pontos acima já nos leva a um elemento necessário para nossa luta: ela se insere dentro da luta social em geral, o que faz com que a universidade não possa ser transformada de forma permanente por si só, assim como ela, por si só, não pode empreender uma alternativa emancipadora radical. No entanto, isso tampouco nos leva a dizer que a universidade é um “caso perdido”, pois, sendo ela uma manifestação de toda a estrutura social e de seu processo educativo, isso significaria abdicar da possibilidade de qualquer transformação social, dentro ou fora da universidade. Pelo contrário, devemos reconhecer essa instituição como um “caso em disputa”, como parte do processo mais amplo de disputa ideológica e material da sociedade. Se as universidades exercem um papel crucial para a reprodução da ordem vigente, também exercem para a resistência e para proposição alternativa, a partir de uma disputa “de dentro para fora” e “de fora para dentro”.
Acreditamos que na realidade brasileira, é fundamental a resignificação da palavra povo. Em um país onde a revolução burguesa ocorreu de cima para baixo, divorciada de uma revolução nacional e democrática, combinando autocracia e dependência com uma modernização conservadora e uma democracia restrita e para as elites, as alternativas populares se divorciaram completamente do bloco de poder dominante, que se tornaram antagônicos entre si. É nesse bojo que se encontram algumas lutas fundamentais de nosso povo, como pela reforma agrária, reforma urbana, pela estatização de empresas estratégicas, etc. A luta pela Universidade Popular, então, se liga a um conjunto de tarefas imediatas da luta “dentro da ordem”, de abertura de espaço democrático e conquista de hegemonia popular e que, ganhando vitalidade enquanto movimento, deverá caminhar para uma luta “contra a ordem”. Dessa forma, o debate em torno de uma Universidade Popular se revela muito mais do que uma oposição às “reformas” universitárias atuais, visto que se insere na reflexão ativa sobre outro projeto de sociedade, a ser protagonizado por todos setores explorados e oprimidos pela sociabilidade vigente.
Como princípios, defendemos:
- Articular a luta por uma Universidade Popular com a luta pela Educação Popular em geral, propondo a horizontalidade no saber, uma formação plena (contra a fragmentação do conhecimento), e pela produção de conhecimento para a classes trabalhadoras e pela transformação social;
- A universidade popular deve constituir-se pelo o povo e para o povo, objetivando a transformação social para a emancipação humana.
Táticas:
- Constituição de um Grupo de Trabalho Nacional sobre Universidade Popular no intuito de dar continuidade a esta construção. Ele será composto inicialmente pelos mesmos convocantes do 1° SENUP, buscando agregar mais organizações e manterá o método consensual de trabalho e organização;
- Constituir e fortalecer na base do movimento grupos de trabalho pela universidade popular;
- Construção de agenda mínima nacional para articulação da luta pela Universidade Popular;
- Construção de um 2° Seminário Nacional de Universidade Popular.
Ciência e Tecnologia
A universidade vem se transformando profundamente com sua associação ao setor produtivo. Esse é um processo que se inicia na fase de industrialização brasileira, se desenvolve com o advento do capitalismo monopolista no Brasil, fase na qual também se consolida. Antes, a academia era uma instituição pequena e auto-referenciada, voltada à formação de profissionais liberais e de quadros para a burocracia estatal. A produção, por sua vez, era desenvolvida pelo senso prático de alguns indivíduos, pela intuição e pelo empirismo. A organização do saber tecno-científico e sua associação à produção gerou um processo inesgotável de renovação e transformação da base material da sociedade, no que se convencionou chamar de sociedade industrial. A universidade cumpriu um papel decisivo nesse processo, e, para isso, colocou-se a serviço da inovação tecnológica. Nas faculdades e universidades nas sociedades pré-capitalistas, o conhecimento era restrito pelo baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas. Após a industrialização, o conhecimento passou a ser restrito por direitos de propriedade intelectual e tornou-se altamente cobiçado por ser instrumental e necessário no processo reprodutivo do capital e de expansão do mercado.
Com o desenvolvimento capitalista, o conhecimento se tornou muito dinâmico. Os países centrais colocaram a produção de conhecimento (e, assim, as universidades) como pilares de seu projeto de desenvolvimento, criando e aprofundando uma estratificação internacional de conhecimento. Nesse novo cenário, as elites passaram a respaldar sua condição de elite não só na riqueza ou no Estado, mas também em uma pretensa superioridade intelectual. A universidade, controlada por esse segmento social, passou a ser o núcleo de certificação do conhecimento válido, o que serviu para deslegitimar saberes populares, indígenas, orais, religiosos e comunitários. Ao mesmo tempo em que consolidava o cânone científico como hegemônico, a universidade pôs a ciência e a tecnologia como mecanismos de acumulação privada de riqueza e reprodução da ordem existente. Ela não só se voltou à criação de novos direitos de propriedade intelectual, mas também forjou um ambiente ideológico que legitima essa como sua função única e ideal.
Dessa forma, a produção de conhecimento revela a universidade como uma instituição social e ideologicamente conservadora. Por trás das inovações, dos títulos e das patentes, revela-se o profundo comprometimento com o mundo atual e a silenciosa renúncia em transformá-lo.
Por isso, a questão diz respeito à orientação programática para a ciência. A difusão de uma ideologia tecnocrática criou a ilusão de que a solução dos problemas da humanidade viria exclusivamente por meio do avanço da ciência e da tecnologia produtiva. Esta ilusão surge da orientação ideológica que atua no sentido de desviar o foco de intervenção humana do plano da estrutura social de classes. O ofuscamento, ou completa exclusão da dimensão social, leva a uma orientação da problemática social ao âmbito da “gestão” e da “responsabilidade individual”, inclusive a administração ganha um caráter “científico” e, por assim dizer, “neutro” e “autojustificado”. Na verdade, a própria expansão produtiva por meio da ciência é inseparável da conformidade ideológica com certos parâmetros de “avanço social” impostos justamente por quem se beneficia deles. Por isso mesmo, no campo da luta pela universidade popular, nos interessa a ligação entre o conhecimento produzido e transmitido nas instituições de ensino superior com os interesses e as necessidades das massas populares e dos trabalhadores. Assim, um dos papéis fundamentais da luta pela universidade popular é revitalizar o papel intelectual crítico e criador dentro da universidade atual, rompendo com os parâmetros da educação que tem o mercado como condição e o lucro como fim.
Defendemos:
- Lutar contra a privatização do ensino e a reprodução da ciência e tecnologia voltada aos interesses do capital;
- Atender as demandas populares através da Ciência e Tecnologia;
- Lutar pelo financiamento público no desenvolvimento da ciência e tecnologia, contrapondo ao financiamento privado que condiciona os fins da pesquisa à mera demanda do mercado;